Reflexões de Paulo Vasconcelos Jacobina,
Procurador Regional da República
Por Paulo Vasconcelos Jacobina*
BRASILIA, quarta-feira, 5 de setembro de 2012 (ZENIT.org) - A imprensa tem noticiado longamente a reforma do código penal. Num momento, aquilo que era domínio de um pequeno grupo de servidores públicos, advogados e magistrados especializados neste setor meio obscuro chamado “direito penal” passou a ser assunto de debates e entrevistas, discussões e artigos jornalísticos.
Em geral, tem-se noticiado que a reforma do código penal transformou-se em assunto de absoluta prioridade no nosso Congresso Nacional. Está tramitando a toque de caixa. Apresentou-se ao povo brasileiro um projeto de código penal elaborado por uma comissão de especialistas e, num átimo, tem-se a impressão de que não há nada mais importante no nosso legislativo, hoje, do que aprovar um novo código penal para o Brasil.
De fato, o nosso povo tem sofrido com a péssima aplicação da nossa legislação penal. Ainda somos, em grande medida, o país da impunidade. Isto poderia dar a impressão de que um novo código penal é, de fato, uma grande necessidade. Mas esta é uma falsa impressão, principalmente quando se percebe que este projeto de código penal não corrige os defeitos que levam realmente à impunidade em nosso país. Na verdade, este projeto de código mantém, quase literalmente, a parte mais escandalosa do atual código penal brasileiro, aquela que diz respeito à prescrição dos crimes, vale dizer, à parte que trata dos prazos que o estado dispõe para processar as pessoas antes que o mero decurso do tempo apague a possibilidade de punição.
O que virá em seguida parece obscuro e confuso, porque de fato o é. Se, ao final do parágrafo, o leitor não acompanhar o raciocínio, não é por limitação do leitor: é proposital, o sistema é deliberadamente confuso, porque visa a impunidade somente dos que têm habilidade para compreendê-lo e manipulá-lo.
Peço, no entanto, a caridade do leitor para que me acompanhe até o fim, mesmo que não entenda completamente o exemplo que escolhi, ou o mecanismo legal que vou tentar explicar. Poucos entendem, fora do círculo dos especialistas em direito penal. Mas é crucial que fique claro qual é o meio pelo qual se consolida a impunidade penal, que está sendo preservado nesta suposta “reforma penal” que não reforma os defeitos, mas que, alegando o combate à “impunidade”, somente dá curso a pleitos ilegítimos contra a vida e a saúde dos mais frágeis, que, bem ou mal, ainda têm uma certa proteção no código em vigor. Falo, por exemplo, da liberação da eutanásia e do aborto.
O sistema brasileiro de prescrição hoje em vigor, que trata do tempo hábil para processar os criminosos, e que o projeto de código penal simplesmente repete, é uma piada, um absurdo que não existe em nenhum outro país: os prazos prescricionais são muito curtos e podem ser contados retroativamente. Isto é muito difícil de explicar para os que não têm formação jurídica em direito penal, e causa a impunibilidade geral dos mais poderosos, daqueles que podempagar bons advogados e multiplicar os recursos processuais para atrasar o processo. Quem conseguir explicar em linguagem popular o que significa de fato o sistema brasileiro de prescrição, de modo a fazer com que o cidadão brasileiro o entenda, vai deixar revoltado qualquer pessoa de bem.
Apenas para se ter uma ideia, exemplifiquemos com um homicídio imaginário. Um agente que mata outra pessoa incide numa norma penal que prevê uma pena de seis a vinte anos de prisão. Assim, aplicando-se uma tabelinha presente no art. 109 do atual código, vê-se que o estado brasileiro dispõe de vinte anos para processá-lo e condená-lo, porque a pena máxima prevista em tese para este crime é de vinte anos. E, digamos, ele vem a responder ao processo e, por conta de manobras jurídicas e da natural vagarosidade judiciária, consomem-se treze anos até uma condenação final.
Aí está o engodo. Nesta condenação final, imaginemos, este sujeito vem a receber uma pena concreta de sete anos de prisão. Pela tabelinha citada, (que o atual código penal prevê, e o projeto repete) não se deve mais levar em conta a pena máxima abstrata de vinte anos (que permitia que o processo durasse até vinte anos sem problemas). Agora, a prescrição deve ser calculada com base na pena concreta, individualizada e efetiva de sete anos. Ocorre que um crime com uma pena de sete anos deve ter um prazo prescricional de apenas doze anos, nesta mesma tabela.
Assim, se antes o estado dispunha de vinte anos para processar o réu, com base na pena máxima prevista abstratamente para o crime de homicídio, agora, ao final do processo, o prazo para processá-lo foi subitamente reduzido para apenas doze anos, com base na pena concretamente aplicada no próprio processo que tramita contra o referido réu.
É neste momento que entra o truque mágico da impunidade: calculando o tempo transcorrido desde o início do processo, vê-se que passaram-se treze anos, no nosso caso imaginário, até esta sentença definitiva.
Como a prescrição se conta para trás, no nosso sistema penal (e, no nosso exemplo, contando o tempo para trás, já há treze anos desde o início do processo até a condenação final), o processo prescreveu e o réu está livre, leve e solto.
Nem sequer haverá registro do processo, que foi invalidado pelo tempo de um modo inevitável, porque somente depois da passagem do próprio tempo é que se estabelece o critério pelo qual a própria passagem de tempo deve ser regulada! Isto é tão absurdo que não tem similar em
nenhum outro país.
Assim, o povo brasileiro paga (financeiramente e eticamente) muitas vezes pelo mesmo crime: uma vez, porque foi vítima do próprio criminoso. Outra vez, porque pagou o salário e as despesas operacionais aos policiais, aos serventuários do Ministério Público e da Justiça (e às vezes até da defensoria pública que assistirá ao réu) para processá-lo, e uma terceira vez porque o réu restou impune em razão da aplicação para trás de um prazo de prescrição magicamente encurtado por uma sentença que ninguém conhecia quando o próprio processo começou. É um sistema de faz-de-conta, manipulável apenas pelos que o conhecem. E este sistema está sendo repetido literalmente neste projeto de código penal tornado subitamente “prioritário”.
Não é, pois, para combater a impunidade que o código penal brasileiro está sendo alterado. O mecanismo arcaico e obscuro que descrevi acima, que gera a impunidade e a ineficiência judicial está integralmente preservado. O que se quer, portanto, é mesmo a introdução, contra a vontade da maioria do povo brasileiro, do aborto, da eutanásia, do tráfico de drogas e do rebaixamento da idade para o sexo consentido para crianças para os doze anos.
Seriam estas as bandeiras de uma “vanguarda” que parece já não ter utopias sociais, mas apenas utopias “pansexuais”? “Venham para o Brasil, estrangeiros”, diremos. “Venham fazer sexo livremente com as nossas crianças de doze anos, tragam licitamente entorpecentes suficientes para os cinco dias em que permanecerem por aqui, já não é crime. Não se preocupem, se algumas das nossas crianças engravidarem, providenciaremos os abortos gratuitamente, na nossa rede pública de saúde, porque as pobrezinhas são imaturas para serem mães. O nosso sistema de saúde é péssimo, mas para os abortos haverá sempre vagas, já os moribundos que estiverem eventualmente ocupando os respectivos leitos serão 'piedosamente' eliminados para que não sofram mais e abram espaço para a matança de criancinhas”. Será uma campanha publicitária internacional notável. Estou certo de que a pressa, neste caso, é a grande amiga da aberração.
* Paulo Vasconcelos Jacobina é Procurador Regional da República e Mestre em Direito Econômico
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