domingo, 20 de maio de 2012

Entrevista com o cardeal Gianfranco Ravasi. Os agnósticos que buscam respostas muitas vezes estão mais próximos de Deus do que aqueles para os quais a fé é simplesmente um hábito mecânico”.


O “Átrio dos Gentios”, expressão que se refere ao espaço aberto do antigo Templo de Jerusalém reservado aos não crentes e separados por um muro dos judeus que participavam dos encontros de oração, tornou-se o marco de uma campanha da Igreja Católica para a abertura ao diálogo com aqueles que não concebem a transcendência e que possuem fortes convicções éticas.

O cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura e diretor desse projeto, é um incansável criador de eventos. O último “Átrio” ocorreu há em Palermo.

Intitulado Cultura da legalidade e sociedade multirreligiosa, ele transmitiu uma forte mensagem de condenação à máfia. Como em todos os “Átrios” que ocorreram anteriormente em diversas cidades do mundo, o cardeal Ravasi se serviu abundante e eficazmente de música, dança, testemunhos pessoais e, nesse caso, da participação das crianças.

Entre os sonhos do cardeal, nos projetos futuros há a ideia de um evento em Jerusalém, do qual participariam as personalidades que representam a cultura judaica, cristã e muçulmana. Apesar das dificuldades, ele acredita que os tempos poderão estar maduros para tal encontro. 

A seguir, estão os ponto de destaque de um diálogo realizado com Sua Eminência, que capta as reflexões sobre os principais pressupostos do “Átrio dos Gentios” e sobre as suas características particulares e específicas de dialógicas. O cardeal é famoso pelo seu profundo conhecimento da Bíblia, pelo seu intenso interesse pelas artes e pelas ciências, mas também pelas suas atividades diárias no Twitter (@CardRavasi), em que se ocupa de aforismos bíblicos e literários, para a alegria dos seus receptivos leitores.

“A ideia foi lançada por Bento XVI durante seu discurso de Natal em 2010 à Cúria e aos diplomatas internacionais credenciados junto à Santa Sé. O objetivo dos eventos do Átrio”, conta o cardeal Ravasi, “é de se comprometer no diálogo com todos os não crentes, vinculados por ideais éticos, mas incapazes de conceber a transcendência, que buscam as respostas às perguntas existenciais fundamentais dos nossos tempos. Os agnósticos que buscam respostas”, afirmam, “muitas vezes estão mais próximos de Deus do que aqueles para os quais a fé é simplesmente um hábito mecânico”.

“Estamos particularmente interessados no discurso científico e sociocultural. Para o catolicismo, o sobrenatural não aniquila a ordem natural. A fé não exclui a razão. A ética religiosa (que constitui a ética moral) está enraizada na ética natural, mas é mais comprometedora, como por exemplo no âmbito sexual”.

“Encontramo-nos em campos neutros de diálogo, não nos da teologia católica. Os não crentes podem ser definidos como agnósticos, humanistas, secularistas, até ateus”, afirma Ravasi, “mas nós insistimos no respeito recíproco. A linguagem agressiva, ofensiva, sarcástica utilizada por alguns ateus militantes não pode produzir ‘diálogo’, que, do grego, significa ‘atravessar’ um tópico para se trocar ideias”.

Os eventos dos “Átrios” foram realizadas em diversas cidades europeias, de Bucareste a Tirana, passando por Barcelona, Florença, Bolonha, Roma e Paris. O último debate ocorreu nos dias 29 e 30 de março em Palermo, intitulado Cultura da legalidade e sociedade multicultural, do qual participaram o procurador antimáfia Piero Grasso,Nando Dalla Chiesa, Remi Bague, Gian Enrico Rusconi e Giuliano Amato.

O cardeal Ravasi recorda com carinho especial o evento de Bucareste(Hungria) sobre o tema Em que crê um não crente?.

“Vieram 2.000 estudantes”, afirmou. Uma mulher que havia se declarado ateia antes que eu falasse depois me revelou: ‘Eu acho que não posso mais me considerar ateia’”.

Eis a entrevista.

Vocês ainda não organizaram um evento no Oriente Médio. O senhor não acredita que o diálogo intercultural nessa área pode reforçar as perspectivas de um maior respeito pelos direitos humanos e pelo desenvolvimento de novas democracias? Envolveria Israel no diálogo?

Eu acredito que a maior parte dos países dessa área ainda não estão prontos para o debate cultural. Mas, sim,Jerusalém seria um ponto de partida ideal. Eu convidei o embaixador israelense junto à Santa Sé para participar de um encontro regional dos embaixadores asiáticos, mas infelizmente ele não pôde intervir. Eu também convidei escritores como Amos Oz, David Grossman, Abraham Yehoshuah para outros, mas de uma forma ou de outra ainda não conseguimos tornar isso possível. Eu ficaria muito feliz de organizar em Jerusalém um encontro com intelectuais e artistas judeus, cristãos e muçulmanos.

O povo judeu ainda pode estar cético com relação às verdadeiras intenções da Igreja. Um pouco por causa dos séculos de” controvérsias” teológicas vinculantes, cujo objetivo principal era a conversão dos judeus, e um pouco por causa das milhares de conversões forçadas, os israelenses poderiam temer o proselitismo…

O nosso objetivo é propor, não impor. Os judeus, por outro lado, assim como os católicos, acreditam que a sua é a Verdadeira fé. Os judeus e os católicos compartilham muitos valores comuns relativos ao campo da moral, ao conceito de Deus e de transcendência, ao simbolismo, possuem um texto comum etc. No que se refere à ética sexual, compartilhamos a mesma visão sobre a homossexualidade e sobre o aborto etc. Existem muitas afinidades, e o diálogo com os judeus é mais simples do que com os protestantes.

As nossas visões não são realmente idênticas. Existem rabinos judeus e homossexuais, e o aborto é permitido durante os primeiros três meses de gravidez se a vida ou a saúde da mãe estão em grave perigo. Um feto é considerado um ser humano só depois do seu nascimento… Existem diversas opiniões nos diversos ramos do judaísmo: judaísmo ortodoxo, conservador, reformista, liberal, reconstrucionista, e humanista e secular.

Talvez estejamos mais próximos do judaísmo ortodoxo. No entanto, mesmo aqueles que se definem como judeus “não crentes” ou “ateus” têm um senso de identidade religiosa mais forte do que os cristãos, graças ao seu conceito de pertencimento ao povo. Quase toda a literatura americana judaica foi produzida por judeus ateus. Estamos muito interessados em empreender um diálogo cultural, antropológico com os judeus seculares israelenses e em compreender de que modo um rabino e um crente consideram um judeu ateu como Woody Allen!

O diálogo com os não crentes se tornou uma prioridade para a Igreja Católica. No 25º aniversário do primeiro Dia Mundial de Oração Inter-Religiosa em Assis, em outubro passado, a “humanista” francesa Julia Kristeva foi uma das principais oradoras.

Ela é uma pensadora excepcional. Eu li muitas de suas obras. O seu diálogo com Jean Vanier em Il loro sguardo buca le nostre ombre sobre os deficientes é repleto de humanidade, de calor materno, com introspecções psicológicas e racionalis. O seu discurso e o do rabino David Rosen foram os mais significativos da jornada. Ambos se concentraram na pessoa humana, na sua dignidade, nobreza e nos seus limites.

O senhor revelou que lamenta o fato de não ter tido a sorte de dialogar com o ateu britânico  Cristopher Hitchens antes da sua morte.

Sim, tenho certeza de que ele reconheceria uma série de valores que não podem ser reduzidos simplesmente a uma questão de células. Ele expressava uma espiritualidade. Não acredito que ele negaria a existência da alma.

Muitas vezes, o senhor cita as piadas daqueles que se definem como não crentes.

Você se refere a declarações como a de Buñuel: “Sou um ateu graças a Deus”, ou de Ionesco: “Todas as vezes que o telefone toca, eu corro na esperança de que pode ser Deus me telefonando, ou pelo menos um dos Seus anjos secretários”, ou do escritor romeno Emil Cioran que escreveu: “Quando você ouve Bach, você vê Deus nascer”, ou deWoody Allen: “Eu não sei se Deus existe, mas, se existe, espero que ele tenha uma boa desculpa”…

Em sua opinião, qual a principal preocupação religiosa compartilhada por cristãos e judeus hoje?

Eu diria a exponencial secularização da sociedade. O fato de Deus existir ou não é irrelevante para muitos. Charles Taylor expressou esse aspecto com um aforismo em Uma era secular (Ed. Unisinos, 2010): “Se Deus viesse hoje para uma das nossas cidades, a única coisa que aconteceria é que lhe pediriam os documentos”.

Nenhum comentário: