O Estado de S.Paulo
À frente da arquidiocese de São Paulo, d. Odilo Pedro Scherer cuida de cerca de 4,5 milhões de almas católicas e cumpre, com afinco, determinação do papa Bento 16: levar o rebanho a confirmar e redescobrir sua fé. O trabalho envolve liderar as fileiras de bispos e outros sacerdotes, mas também garantir a presença da Igreja na mídia e ocupar espaços públicos – em um campo religioso cada vez mais competitivo. O cardeal, que participa, no fim de maio, do Encontro Mundial das Famílias com o papa, em Milão, acaba de passar 10 dias com 300 bispos na Assembleia-Geral da CNBB. Em conversa com a coluna, não recusou nenhuma pergunta: de eleições (”ajudamos a comunidade a discernir sobre cada candidato”) à recente aprovação de aborto de anencéfalos pelo Supremo (”uma perda para a sociedade”).
Aos 62 anos, d. Odilo foi escolado nos corredores do Vaticano e carrega um blend de sotaques que reúne o original sulista, dialetos em alemão – falados em sua casa, na infância -, italiano e, agora, uma pitada de paulistanês. Na entrevista a seguir, ele revela que padres fazem psicanálise, diz gostar de Chico e Beethoven e explica por que a Teologia da Libertação, ao que parece, se foi para não mais voltar.
Qual o lado bom e o lado ruim de ser arcebispo de SP?
É uma enorme graça de Deus. E, sem dúvida, é motivo de muita alegria receber uma missão tão importante. O lado difícil são os enormes desafios. A arquidiocese de São Paulo é muito grande, e o volume de trabalho também. Além de participar de todas as atividades do universo religioso, é preciso acompanhar a mídia e estar no espaço público e político, seja pela natureza da Igreja, que represento, seja pela vontade das pessoas de ouvir o arcebispo em certos momentos.
O que o senhor sentiu ao receber a notícia de que seria nomeado bispo auxiliar para SP e mais tarde arcebispo?
Eu já tinha 52 anos e trabalhava na Congregação para os Bispos na Santa Sé, por onde passam as nomeações dos bispos. Portanto, sabia o que significava e as implicações do serviço. Senti, evidentemente, o peso da decisão. No momento em que disse “sim, aceito”, senti uma enorme carga de responsabilidade.
Teve medo?
Medo, não. Mas pensei nas implicações e se daria conta.
O senhor já fez terapia? Padres podem fazer?
Eu nunca fiz, mas padres podem, sim, fazer. Por que não? Em algumas situações, é até aconselhado.
Conhece casos de padres que fizeram?
Conheço, mas não vou citá-los. O padre é um ser humano. Pode ter estresse, crise depressiva, disfunção neurológica hereditária, que provoca problemas psicológicos e comportamentais.
Quando o senhor não está envolvido com as atividades de cardeal-arcebispo, costuma fazer o quê?
Gosto muito de música popular e erudita. Beethoven, Bach e Brahms. Também Chico Buarque, Maria Bethânia… da MPB, gosto de vários cantores. Escuto música quando trabalho, no escritório, enquanto mexo na papelada. Este é um hábito que aprendi no seminário e que trago desde menino.
Vai ao cinema?
Pouco, infelizmente. Não dá tempo. Mas gosto de ir.
O senhor viu o filme Habemus Papam (ficção sobre um papa que, ao ser eleito, não consegue assumir por causa do peso da responsabilidade), que está em cartaz nos cinemas?
Ainda não. Vou tentar assistir na Itália, no idioma original.
O papa é esperado no Rio para a Jornada da Juventude, em 2013. Qual a importância do evento?
É muito importante, para que apareça o rosto jovem da Igreja. Para que interajam e vejam que há muitos outros jovens, inclusive de outros países, que creem como eles. Também é um momento de se encontrarem com o papa Bento 16.
Quais são os desafios de realizar este evento?
São muitos, de todo o tipo, de ordem logística. Isso não é fácil em um evento para o qual se esperam milhões de pessoas. Está mais por conta da arquidiocese do Rio, que organiza localmente e está trabalhando duro. Estamos organizando, em âmbito nacional, o envolvimento de toda a juventude.
Existe a expectativa de um grande público no Rio?
Existe. O Rio de Janeiro atrai por si mesmo, mas não se vai para lá fazer turismo. A Jornada é momento de viver uma programação intensa, com várias temáticas, em conjunto, pelos participantes. Isso requer bastante esforço e até disposição para enfrentar alguns desconfortos. É evidente que, no fim, por melhor que seja a organização, em algum momento vai falhar. Não é que todo mundo poderá dormir em hotel de quatro estrelas, e é inevitável o congestionamento no trânsito, por exemplo. Mas o pessoal vai na alegria, porque é uma experiência única.
Como manter os jovens envolvidos com o catolicismo e o seu lado erudito?
A Jornada Mundial da Juventude é um modo de despertar isso. Não há como manter o interesse dos jovens, senão pondo-os em contato. Ninguém ama o que não conhece. O encontro é para deixar que a juventude faça suas perguntas, se expresse e perceba também os valores e toda a história da Igreja. Isso faz com que ela se sinta parte da Igreja e não a enxergue como algo distante.
Como se adaptar aos novos tempos sem perder a qualidade do catolicismo?
Este é um enorme desafio, que a Igreja enfrenta há dois mil anos. Estamos vivendo uma virada epocal, semelhante à ocorrida na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, e da Moderna para a Contemporânea. São momentos em que a Igreja tem de reaprender, propondo-se de forma nova, mas mantendo-se idêntica a si mesma. É o que estamos precisando fazer hoje.
A Renovação Carismática é um caminho?
É, mas não o único. Existem muitos outros, bem diversos da Renovação Carismática.
Como, então, frear a perda de fiéis para igrejas pentecostais?
Não há outro modo, senão ajudando os fiéis a se sentirem fortalecidos na própria fé e enraizados na Igreja. Mas a ideia que se passa é que só a Igreja Católica está perdendo fiéis. Outras perdem, porcentualmente, muito mais. Se vocês olharem o censo de 2000 a 2010, verão o quanto a Igreja Universal do Reino de Deus perdeu. Hoje, há uma oferta religiosa muito ampla, e eu diria agressiva. As pessoas, de alguma forma, estão sob pressão para fazer novas escolhas.
Este é um ano de eleições. Na sua opinião, a religião deve influenciar a política?
Não sei se a religião deve influenciar a política, mas as convicções religiosas dos cidadãos repercutem na política. Religião e política não se fundem, não se sobrepõem, mas é muito difícil separar as duas coisas.
Qual a orientação da Igreja Católica para o processo eleitoral deste ano?
A mensagem dos bispos é para que o povo se interesse pela participação política, procure conhecer bem os candidatos. Fiquem atentos à aplicação da lei 9.840, contra a corrupção eleitoral, o abuso do poder econômico e a compra de votos. Enfim, estejam atentos para escolher candidatos idôneos.
A Igreja apoia candidatos?
Não costumamos indicar candidatos, porque é uma questão de escolha livre e consciente de cada um. Recomendamos, também, que o clero não tome posição partidária, pois isso cria divisões. Não escolhemos partidos nem candidatos. Mas ajudamos a comunidade a discernir sobre cada um. E possa escolher aqueles sintonizados com nossas convicções – de justiça social, atendimento das necessidades da população carente, justiça econômica, promoção do desenvolvimento, respeito à dignidade da pessoa e moralidade pública.
Na Itália, sede do Vaticano, e em vários países desenvolvidos, o aborto é legalizado há muitos anos. A Igreja está na contramão da saúde pública?
A legalização do aborto não é a promoção da saúde pública, mas a legalização da morte de seres humanos. Se está na contramão de outras decisões? É possível, mas a Igreja não pode estar na contramão dos princípios básicos da dignidade humana, proclamados pelas nações, pela Constituição brasileira, pela ONU. Nem que todos os países aprovassem a legalização do aborto, a Igreja não poderia aprová-la.
Como o senhor recebeu a aprovação do aborto de anencéfalos pelo STF?
A aprovação não muda a posição da Igreja em relação à questão, que é de respeito pleno à vida daquele ser humano – ainda que seja muito breve. Se isso foi tornado legal, não significa que se tornou moral. Fique claro que não foi a Igreja que perdeu, nem os cristãos, mas a sociedade brasileira. A humanidade perdeu em sensibilidade, em respeito à pessoa e ficou mais endurecida em relação às fragilidades e aos defeitos humanos.
Se não houvesse celibato, haveria mais padres?
Não sei, talvez. É bastante difícil responder a esta pergunta de forma hipotética. Porém, há um fato: em outras igrejas que não têm celibato, também faltam ministros. O problema não é o celibato, mas uma coisa mais profunda, a experiência da fé e o valor da proposta religiosa.
Quais foram e ainda serão as consequências para a Igreja dos casos de pedofilia? Como o senhor os enxerga?
Não é só um problema da Igreja. Mais de 90% dos casos ocorrem embaixo do teto familiar. Lamentavelmente, também ocorreram e ocorrem em ambientes religiosos. Creio que trouxe um grande dano à credibilidade da Igreja, mas também está trazendo grande purificação. E uma atenção também da sociedade para a questão.
Como coibir, de forma prática, a pedofilia na Igreja? Palestra? Terapia?
Não é só na Igreja, é na sociedade como um todo. Como é possível tentar combater isso se, nas escolas, coloca-se camisinha ao alcance de crianças? São um convite a fazer sexo, a promiscuidade, desde cedo. A preocupação é combater a aids, mas não se percebe que ali está se promovendo um monte de outras consequências danosas. Dentro da Igreja, evidentemente estamos muito atentos em fazer uma nova retomada da consciência, respeito aos valores morais e da observância dos mandamentos da Lei de Deus.
A Teologia da Libertação está enfraquecida, mas ainda é lembrada como uma corrente da Igreja preocupada em abolir as injustiças sociais.
Foi um momento da história da teologia. Ela perdeu suas motivações próprias, por causa da ideologia marxista de fundo – materialismo ateu, luta de classes, uso da violência para conquistar objetivos -, que não casa com a teologia cristã. Isso foi percebido pouco a pouco. Talvez tenha tido méritos, por ajudar a recobrar a consciência de questões como justiça social, justiça internacional e a libertação dos povos oprimidos. Mas estes sempre foram temas constantes do ensino da Igreja. E vão continuar a ser.
Ainda há muitos padres da Teologia da Libertação?
Não sei se muitos. Ainda existem simpatizantes, mas já não são tantos assim.
Nos seminários brasileiros, ainda há bastantes padres da Teologia da Libertação lecionando?
Não, não creio.
O senhor poderia ser eleito papa um dia? Pensa nisso?
Não estou imaginando isso, não. Só um será eleito papa e existem tantos que podem ser escolhidos! É o conclave que decide, não alguém que se propõe ou que diz “quero ser papa” ou “vote em mim, eu vou ser papa”. Isso não existe. Portanto, não passa pela minha cabeça outra coisa além de ser arcebispo de São Paulo.
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