domingo, 29 de setembro de 2019

“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e verdade” (Jo 1,14)


  Cristo, A Palavra Viva do Pai 


A “Palavra” foi feita para ser ouvida, proclamada e, consequentemente, vivida. Mas ela não é uma palavra qualquer, desprovida de significado e, portanto, sem reproduzir efeitos e ecos profundos no coração e na existência dos ouvintes. Referindo-nos à Palavra de Deus, enquanto atitude de comunicação e revelação divinas, toda a Sagrada Escritura, desde o Antigo ao Novo Testamento, manifesta essa “Palavra de Deus”, atravessando os séculos e se tornando, sempre de novo e com a mesma intensidade, uma força “viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir alma e espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e as intenções do coração. E não há criatura oculta à sua presença. Tudo está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4,12-13).

Embora no NT, expressões desse tipo plantam suas raízes em citações do AT, como no profeta Isaías: “De minha boca fez uma espada cortante, abrigou-me à sombra de sua mão; fez de mim seta afiada, escondeu-me na sua aljava” (Is 49,2). O profeta Jeremias, por sua vez, refere-se à “palavra” como “fogo” ou “fogo devorador”. Porventura, “não é a minha palavra como fogo? – Oráculo de Iahweh. E como martelo que arrebenta a rocha?” (Jr 23,29). E ainda: “Porque falastes esta palavra, eis que farei de minhas palavras fogo em tua boca e, desse povo, lenha que o fogo devorará” (Jr 5,14). Em outros termos, Deus está presente e operante na sua Palavra. Por isso é colocada em evidência uma outra vertente dessa palavra: ela é penetrante. Ela conhece tudo, até os segredos mais escondidos do coração. E é comparada à espada de dois gumes, que corta em todas as direções. Assim é a palavra de Deus. O mais absoluto segredo ou mistério humano está aberto diante dessa palavra. Portanto, ela pode ser o juiz mais justo e imparcial do que acontece na conduta e no coração. (Commento della Bibbia Liturgica).

Nesse contexto de “palavra operante”, encontramos, pois, a riqueza inesgotável do poder criativo que ela, não apenas representa, mas realiza, de fato, na possibilidade ilimitada dos eventos, arrancados da extraordinariedade da criação. Logo, é a palavra criadora de Deus que sai da “ociosidade” aparente para o esplendor progressivo de sua autorrevelação. Deus cria pelo poder de sua palavra. Inclusive, essa é uma das mais plausíveis concepções ou características bíblicas da palavra prenhe de eventos, de acontecimentos. E se a gente pensa no livro do Gênesis, e abre suas primeiras páginas e se depara com o “faça-se a luz” ou o “haja luz” – enquanto o desejo imperativo da palavra se torna evento, realidade –, o horizonte de nossa compreensão se dilata e abraça o universo inteiro, isto é, “o céu e a terra” que se estendem, de geração a geração, manifestando a glória de Deus, como reza o salmista: “Os céus contam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia entrega a mensagem a outro dia, e a noite a faz conhecer a outra noite” (Sl 19,2-3). Segundo os estudiosos, a Lei e a natureza são duas manifestações incontestáveis da perfeição divina.

A Lei foi colocada por Deus para orientar o comportamento dos homens diante de sua presença. Eleito e constituído, o Povo de Israel se empenhará para fazer valer a profissão de fé que determina a sua crença no Deus único – “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh” (Dt 6,4) –, e que apresenta a divina solicitação à escuta de sua palavra: “Ouve, ó Israel, os estatutos e as normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos” (Dt 5,1). Não obstante toda a infidelidade que sempre marcou a inquietação do homem, desobediente e perdido dentro de seu próprio espírito, Deus não trai a si mesmo, não se deixa vencer pelas investidas desleais ou traiçoeiras da obra-prima de suas criaturas. Por isso é que ele, por seu turno, não se cansará, jamais, de repetir o imperativo solene de seu eterno “Ouve, ó Israel”, que ecoará na consciência de seus filhos pelos séculos sem fim, ainda mais agora “na plenitude dos tempos” (Gl 4,4), quando o seu divino Filho se tornou, concretamente, a voz amorosa do Pai na vida espiritual dos cristãos, o novo Povo de Israel. De fato, todo o NT está sobejamente cheio de indicações que apontam a presença visível da Palavra do Pai que, tornando-se “carne”, habitou entre nós e se revestiu da nossa própria humanidade.

A tradição bíblica nos presenteou a palavra de Deus, relatando-nos os fatos históricos salvíficos que culminariam – como realmente aconteceu – na manifestação plena de Cristo, a palavra viva do Pai, o que São João sintetiza numa expressão, ricamente teológica, indicando a sua preexistência: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e verdade” (Jo 1,14). Mais do que se tornar próximo do homem, Deus mesmo se submeteu à nossa humanidade, assumindo-a de maneira radical, definitiva. O Cardeal Carlo Maria Martine resume a experiência humana de Jesus, Deus e homem, porquanto de fato ele é a palavra plena e definitiva. Ele é o homem perfeitamente realizado. Qualquer outra pessoa humana, qualquer outra palavra humana são verdadeiramente humanas em referimento a ele e a partir dele. O acontecimento histórico de Jesus, como palavra de Deus, como sinal humano de Deus, tão próximo de Deus a ser realmente idêntico a Deus, encontra o seu selo na Páscoa, quando a unidade real de Jesus com o Pai é manifestada de maneira suprema. Jesus se confia ao Pai numa obediência tão radical, que abraça, inclusive, a morte na cruz; e o Pai a tal ponto se une a Jesus de maneira a comunicar-lhe a vida gloriosa da ressurreição; e o Espírito Santo, que é o amoroso carimbo da unidade do Pai com o Filho, guia toda a vida de Jesus até à morte, age como princípio potente de ressurreição e pelo Cristo ressuscitado, no qual habita em plenitude, vem derramado sobre a Igreja e em todos os crentes. Portanto, a vida de Jesus, da encarnação até a efusão pascal do Espírito, é, de modo definitivo, palavra de Deus. Nela, Deus diz, propriamente, quem ele é: é comunhão de vida, é amor, é Trindade. E diz, também, quem ele quer ser para o homem: quer ser o Pai que ama, o aliado que acolhe e salva, o amigo que condivide até a morte a condição do homem, afim de tornar o homem participante de sua condição divina.

Tornando-se a palavra do Pai, é vontade Sua que todos escutemos o seu divino Filho, conforme sua teofania na transfiguração de Jesus: “Este é o meu Filho amado; ouvi-o” (Mc 9,7). Destarte, a palavra de Deus transmitida e anunciada num código de leis, torna-se a “Lei” por excelência. Assim, mais do que nos fazer “habitantes espirituais” da Palavra de Deus, como a temos na Bíblia Sagrada, devemos permitir que Cristo nos habite, plenamente, cumprindo em nós a sua obra redentora. Devemos nos abrir, de maneira total, ao encontro com ele; devemos baixar todas as comportas mentais, psicológicas, espirituais; devemos consentir que a claridade de sua luz invada o nosso coração, deixando-nos ser amados por ele. Cristo no meio de nós, Cristo em nós, é a “pátria espiritual” da palavra de Deus onde queremos viver a intensidade profunda de sua eficácia redentora. (Texto extraído do livro “Sem medo de ler a Palavra de Deus”, do Pe. Gilvan Rodrigues, ano 2012, p. 43-46). 



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