terça-feira, 15 de maio de 2012

Palavras lúcidas e proféticas: direto ao essencial


Meu caro Leitor, as linhas abaixo são para quem se interessa pela história recente da Igreja e pela análise da sua atual situação. Tratam-se de uma entrevista concedida pelo Cardeal Jean Daniélou à Rádio Vaticano. Por falar o que pensava – e o que pensava não era e não é a moda das últimas décadas – foi perseguido e jogado ao esquecimento. É o preço a ser pago pelos verdadeiros profetas de ontem e de hoje...

Antes das palavras da entrevista, deixe-me informá-lo de algumas notícias sobre este homem notável: (1) Daniélou foi um dos pais da chamada “Nouvelle Théologie” (= Nova Teologia), um movimento nascido na França, que desejava desenvolver um novo método de fazer teologia, levando mais em conta a Sagrada Escritura, os Padres da Igreja e os grandes teólogos medievais, mas lidos na sua totalidade e no seu contexto histórico. A Nouvelle Théologie é um modo belíssimo e fecundo de se fazer teologia! Alguns nomes desse movimento: Henri de Lubac, Jean Daniélou, Teilhard de Chardin, Yves Congar, Marie-Dominique Chenu, Louis Bouyer, Étienne Gilson, Jean Mouroux. Joseph Ratzinger é um dos herdeiros desse belíssimo movimento e grande admirador de De Lubac e de Daniélou. Os teólogos da Nouvelle Théologie sofreram muitas incompreensões na sua época. Foram eles que, em grande parte, colocaram as bases para o Concílio Vaticano II. Infelizmente, após o Concílio, a teologia predominante foi uma outra, que desvirtuou em muito as intenções e os textos do Vaticano II, dando origem ao mito do “espírito do Concílio” e utilizando uma hermenêutica de ruptura com o passado, como se a Igreja tivesse sido refundada pelo Vaticano II! Se antes Henri de Lubac fora incompreendido pelos tomistas mais conservadores, agora seria ridicularizado pelos fautores da teologia de ruptura do pós-Concílio... Daniélou experimentou isso na carne e a entrevista que apresentarei a seguir foi o marco do início das hostilidades contra ele. Sendo jesuíta, sofreu tanto na sua própria congregação que foi morar numa casa de religiosas de outro instituto! (2) A morte de Daniélou gerou muita polêmica. Ele morreu na escadaria de entrada da casa de uma prostituta de Paris. Morreu com uma certa quantia em dinheiro no bolso. Seus adversários e inimigos logo se encarregaram de lançar sobre ele a triste suspeita de que estava ali para desfrutar dos serviços da prostituta. Infelizmente também entre filhos da Igreja existe esta tática: por vezes, quando não se consegue desacreditar alguém por suas ideias, lançam-se sobre essa pessoa suspeitas contra sua moral sexual! É triste, mas acontece! Na verdade, o Cardeal Daniélou era um homem piedoso e apostólico. Soube-se depois que ele costumava ajudar espiritual e financeiramente algumas prostitutas e gente miserável de Paris. Naquela noite, já ruim da saúde, ele caminhou um longo trecho a pé para levar dinheiro à prostituta Mimi Santoni. A própria Mimi explicou que aquele dinheiro era uma ajuda do Cardeal para pagar a saída de prisão do namorado dela. A suspeita foi manchete nos jornais; a verdade ficou escondida e a fama do Cardeal, manchada! Escritor e teólogo profundo, seu nome ficou no esquecimento. Ainda bem que Deus existe e Sua justiça é infinita; e na Sua luz contemplaremos a luz!

A seguir, as palavras da entrevista profética de Daniélou. O que ele disse então, em 1972, cumpriu-se... Concordo com ele totalmente! E suas palavras ainda podem enfurecer a muitos...  

Eminência, existe realmente uma crise na vida religiosa? Pode dizer as dimensões dela?

Penso que exista atualmente uma crise muito grave da vida religiosa e que não se deva falar de renovação, mas, ao invés, de decadência. Penso que esta crise atinja sobretudo a área atlântica. A Europa do Leste e os países da África e da Ásia apresentam neste ponto uma melhor saúde espiritual. Esta crise se manifesta em todos os âmbitos. Os conselhos evangélicos não são mais considerados como consagração a Deus, mas vistos numa perspectiva sociológica e psicológica. Há uma preocupação de não apresentar uma fachada burguesa, mas no plano individual a pobreza não é praticada. Substituiu-se a obediência pela dinâmica de grupo; com o pretexto de reagir contra o formalismo, toda regularidade da vida de oração foi abandonada e as consequências desse estado de confusão são sobretudo o desaparecimento das vocações, porque os jovens pedem uma formação séria. E, por outro lado, há os numerosos e escandalosos abandonos dos religiosos que renegam o pacto que os ligava ao povo cristão.

Pode nos dizer quais são, na sua opinião, as causas desta crise?

A fonte essencial desta crise é uma falsa interpretação do Vaticano II. As diretrizes do Concílio eram claríssimas: uma maior fidelidade dos religiosos e religiosas às exigências do Evangelho, expressas nas constituições de cada instituto e, ao mesmo tempo, uma adaptação das modalidades dessas constituições às condições da vida moderna. Os institutos que são fieis a estas diretrizes conhecem uma verdadeira renovação e têm vocações. Mas, em muitos casos, foram substituídas as diretrizes do Vaticano II por ideologias errôneas, colocadas em circulação por revistas, encontros e teólogos. E entre estes erros pode-se mencionar:

- A secularização. O Vaticano II declarou que os valores humanos devem ser levados a sério. Mas nunca disse que nós deveríamos mergulhar num mundo secularizado no sentido que a dimensão religiosa não deveria mais estar presente na civilização e é em nome de uma falsa secularização que religiosos e religiosas renunciam ao seu hábito, abandonam as suas obras para inserir-se nas instituições seculares, substituindo a adoração a Deus por atividades sociais e políticas. E isto vai na contramão, entre outras coisas, em relação à necessidade de espiritualidade que se manifesta no mundo de hoje.

- Uma falsa concepção da liberdade, que leve cosigo a desvalorização das constituições e das regras e exalta a espontaneidade e a improvisação. Isto é ainda mais absurdo enquanto a sociedade ocidental sofre atualmente com a ausência de um disciplina da liberdade. A restauração de regras firmes é uma necessidade da vida religiosa.

- Uma concepção errônea da mutação do homem e da Igreja. Mesmo quando os contextos mudam, os elementos constitutivos do homem e da Igreja são permanentes e a contestação dos elementos constitutivos das constituições das ordens religiosas é um erro fundamental.

Mas, o senhor vê remédios para superar esta crise?

Penso que a única e urgente solução é frear os falsos rumos tomados por um certo número de institutos. Para isto é necessário pôr fim a todas as experiências e a todas as decisões contrárias às diretrizes do Concílio; prevenir contra os livros, revistas e encontros nos quais se difundem essas concepções erradas; restaurar na sua integridade a prática das constituições com as adaptações pedidas pelo Concílio. Onde isto parecer impossível, eu penso que não se pode negar aos religiosos que desejam ser fieis às constituições da sua ordem e às diretrizes do Concílio Vaticano II,que constituam comunidades distintas. Os superiores religiosos devem respeitar este desejo.

Estas comunidades devem ser autorizadas a ter casas de formação. A experiência mostrará se as vocações serão mais numerosas nas casas de estrita observância ou nas casas de observância mitigada. No caso em que os superiores se oponham a estas solicitações legítimas, um recurso ao Sumo Pontífice é certamente lícito.

A vida religiosa tem um grandioso futuro na civilização técnica. Mais esta se desenvolva, mais fará sentir a necessidade das manifestações de Deus. Isto é precisamente a finalidade da vida religiosa. Mas para cumprir sua missão é preciso que ela reencontre seu autêntico significado e rompa radicalmente com uma secularização que a destrói na sua essência e a impede de atrair vocações.

Ainda uma observação minha: Hoje, quem resgata na Igreja a radicalidade da vida religiosa são principalmente as novas comunidades e as ordens e congregações mais austeras. Nelas não há crise de vocações; pelo contrário! No mais, quanta decadência se vê... Quanta tristeza, pois a vida religiosa é bela e profética, desde que seja um sinal do céu na terra da humanidade! Fora disso, não passa de triste caricatura. Olhe em volta que você verá! E dá pena, muta pena!

Postagem retirada do Blogger de Sua Excelência Reverendíssima Dom Henrique Soares da Costa (Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Aracaju).

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